“Por favor, dá-me um cigarro?” Foi assim, com modos delicados, que um jovem
se nos dirigiu, quando íamos a entrar numa grande superfície comercial.
Naquela fracção de segundo entre o procurar o maço de cigarros e o reparar no rosto de quem nos estendia a mão, não evitámos, no nosso íntimo, algum espanto: um jovem bem parecido, limpo, barba feita, aparentemente sem dificuldades motoras, estendia a mão por um cigarro!
Metemos conversa. Um diálogo mais ou menos monossilábico no inicio…
– Um cigarro?
– Sim, desculpe…
– Tudo bem…dois!
Ao agarrá-los, o "novelo" que tinha dentro de si começou a desenrolar-se.
– Sabe, não sou daqui, procuro andar por sítios onde não seja fácil conhecerem-me. Tenho vergonha.
– …………
– Andei na Universidade, em Direito, mas as propinas, a alimentação, a roupa, a casa, tudo somado era menos do que os cortes que os meus pais tiveram nos seus rendimentos e, muito a custo, outro remédio não encontraram senão dar-me o sinal de paragem. Parei, claro.
– Trabalho?
– Enviei dezenas, centenas de currículos e ninguém respondeu. Não sei roubar…tenho de pedir!
– Como se vive, assim?
– É outra escola. Aqui, aprende-se a não pensar no "logo", no "amanhã". Só existe o "agora". Por isso não penso no que irei comer à noite, se comerei ou se me enroscarei no pequeno cobertor que um feirante me deu, no patamar de alguma escada; também se aprende a resistir a outras coisas, muito embora para a sociedade um sem-abrigo é um drogado em potência. E não é. Mas os que entraram por essa via foram os que não suportaram o peso desta tortura contínua.
– E quando pede ?
– Há quem páre e dê e há quem vire a cara ao lado fingindo não ver ou não ter ouvido o pedido. Sinto mais vergonha nessa altura.
– Porquê?
– Ser-se ignorado fere muito.
– Falou de seus pais…
– Pois…muita gente me põe essa hipótese. Mas não quero ser um fardo. Sei muito bem que tirariam da boca para me dar e se me disseram que não tinham posses para suportar os meus estudos já há muito tinham ultrapassado os limites do possível. Tenho quase a certeza que se endividaram…
– Mas há o afecto…
– Quantas vezes dou por mim a pensar neles. Misturo as lágrimas com a chuva, má companheira destas últimas noites.
– Disse "muita gente". Sempre fala com alguém…
– Não. Nem sei se alguma vez, nestes dois anos de vida sem vida, estive tanto tempo a falar com uma pessoa a quem pedi algo. A história é outra…
– …..
– Numa cidade grande, fui abordado por um grupo de pessoas que, disseram, andavam a fazer um levantamento dos sem-abrigo. Foi um questionário longo. Resultado: passei a ter número!
– Só?
– Só!
– Está a referir-se ao levantamento feito pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa?
– Foi notícia, pois foi. Foram correctos, impecáveis, mas…nada mais do que isso!
– Amanhã…
– …é outro dia, como diz o povo. Não sei. Não penso. Não tenho horizonte tão largo…
Um diálogo verdadeiro. Vivido e sentido. Entre dois cafés bebidos timidamente numa esplanada dessa superfície, onde houve quem olhasse, voltasse a olhar, como se aquele cidadão que há momentos pedia um cigarro, não tivesse direito a beber um café, sentado numa esplanada!
Um cidadão com nome mas…com número. O número da Misericórdia.
Costa Santos
Jornalista
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